Deita no Cimento! – Músicas do Carnaval de Rua de Belo Horizonte 2009-14

LP

Double LP, Capa Gatefold

Lado A
1 – Marcha da Alcova (Rafael Ludicanti e Bloco da Alcova Libertina)
2 – Fui Me Banhar na Praia da Estação (Ommar Motta)
3 – Vai Pra Mudar o Brasil (Daniel Saavedra)
4 – Marcha da Estação (Começa com M) (Renato Villaça e João Basílio)

Lado B
1 – Então Brilha (Bloco Então Brilha)
2 – Aflorou (Bloco Pena de Pavão de Krishna)
3 – Bloco Moreré (MR12)
4 – Filhos de Tcha Tcha (LG Lopes, José Luis Braga, Flávia Mafra e Yuri Vellasco)
5 – Marchinha do Manjericão (Bloco do Manjericão)

Lado C
1 – Coxinha da Madrasta (Flavio Henrique e Juliana Perdigão)
2 – Imagina na Copa (Guto Borges, Matheus Rocha e Daniel Inglesias)
3 – O Baile do Pó Royal (Alfredo Jackson, Joílson Cachaça e Thiago Dibeto)
4 – Solta o Seu Toin (Mauro Bainha)
5 – Homenagem ao Manja Rolha (Gustavo da Macedônia, João Fialho e Marcos Frederico)

Lado D
1 – Solte Seu Sorriso Maroto (Bloco do Peixoto)
2 – Mamá na Vaca (Bloco Mamá na Vaca)
3 – Dizem que a Tetê é uma Santa (Omar Mota)
4 – O Carnaval Não Tem Fim (Rafael Fares e Rafael Ludicanti)
Faixa Bônus: Apocalipse do Amor (Dead Lover’s Twisted Heart)

Olhando para trás parece que faz tempo. Muitos anos, talvez décadas, mas em verdade trata-se de um pouco mais de meia década. Quando qualquer cidadão de Belo Horizonte, por mais bem intencionado e amante da folia momesca que fosse, iria lhe afirmar seguro: “BH? Carnaval em BH? De maneira alguma, aqui não tem carnaval”. Explico. 2009 era um ano especialmente triste por aqui. Parecia culminar ali uma série de acúmulos e golpes à vida pública da cidade que traziam à tona a imagem apagada de uma cidade empobrecida dos seus espaços de convívio (ruas, praças), marcada por proibições de toda ordem (pipoqueiros, ambulantes, bancos de praça), e verticalizações de toda natureza. Era o triunfo inquestionável dos automóveis, das vias rodoviárias, dos infindáveis viadutos. E a festa de rua, a alegria do carnaval por exemplo, passavam literalmente ao largo daqui. O que havia restado resistia na forma de desfiles de blocos caricatos, alguns poucos blocos de rua e escolas de samba, que como nas tragédias gregas, haviam sido simbolicamente expulsos da pólis, tendo sido levados a acontecer fora da cidade.

Mas houve algo da ordem de um “terremoto clandestino” que se passou por volta do mesmo 2009. Foi o ano do decreto que proibia “a realização de eventos de qualquer natureza” na principal praça da cidade que gerou as articulações para a realização da Praia da Estação; da consolidação do Duelo de MCs sob o Viaduto Santa Tereza; e do início de uma das mais importantes ocupações urbanas da cidade, a Dandara no bairro Céu Azul. É ainda o ano que marca o ressurgimento (ou a insurgência) dos blocos de rua da cidade. Ali pelo bairro Sta. Efigênia já podíamos encontrar os blocos do Peixoto e Approach, e na Serra o Tico-Tico Serra Copo. No ano seguinte (2010) já atingimos a façanha de ter um bloco por dia, incluindo aí o Mamá na Vaca no bairro Sto. Antônio e a Tetê a Santa, em Sta. Tereza, seguidos pela estreia do Bloco da Praia. Nesse ano o Samba Queixinho fez seu primeiro desfile, na ocasião junto ao Tico-tico, seguidos do Filhos de Tcha Tcha na segunda-feira e o “veterano” Peixoto ganhou mais uma vez a Pça. Floriano Peixoto no dia seguinte. No sábado já se fazia o encontro de blocos Vira o Santo, que entoava finalmente: “vira o santo meu bem, carnaval só no ano que vem!”. Pois eis que no ano seguinte, 2011, além de muita chuva, teríamos o Então, Brilha! saindo com alguns poucos integrantes pela rua Guaicurus, a estreia do Bloco Moreré, da Alcova Libertina e do Bloco do Manjericão, assim como tantos outros blocos que descortinaram um mundo novo e festivo, que caminha hoje a pleno vapor pelas ruas da cidade. Mas vale nos atermos ao fato de que já em 2010 parecia ter se desenhado não um carnaval (afinal o carnaval é a marca dos muitos, e por isso é uma cultura e uma tradição muito maior), mas um pequeno percurso inaugural, uma narrativa re-fundadora que serviu de território, de terreno, e permitiu que a festa avançasse, se desdobrasse e se derramasse “sem fim” pelas ladeiras de Bellot. E é sobre esse período que falamos neste disco.

É curioso perceber – afinal é esse o objeto da presente coletânea – que esse movimento foi acompanhado muito de perto por uma enxurrada de composições atreladas ao carnaval. Era uma brincadeira à época: para se fazer um bloco é preciso apenas um estandarte e um hino. Fato é que quase todos os blocos que surgiram nesse bojo tiveram marchas ou cantos (vários deles presentes nesta coletânea) que além de definirem sua toada, lhes eram deliciosamente profissões de fé: “esse é nosso lema, gente é prá brilhar!”, “chuta a família mineira!”, “abre alas pra ela passar, que hoje eu quero mamar” ou ainda “milagre mesmo minha santa, é BH ter carnaval!”. Vale lembrar que, curiosamente, nesse mesmo período foram as marchinhas que retornaram como uma língua ao mesmo tempo ancestral e atual do carnaval, o que certamente culminou no surgimento, em 2012, do Concurso Mestre Jonas de Marchinas de Carnaval, ainda hoje canalizador de grande parte dessas composições.

E se historicamente as marchinhas guardam essa crônica, essa verdadeira língua de rua da vida brasileira – recheada de sarcasmo e opinião política – , é importante lembrar que, enquanto fórmula simples, modesta, aberta, elas foram capazes de se adaptarem a diversos cenários, vozes e épocas: “Música de corpos soltos, sexualizados, em tudo oposta à perfeita execução, exige de quem a compõe modéstia. Modéstia da entrega a um gênero no qual a originalidade musical se vê reduzida ao compartilhamento de um conjunto de melodia simples disponível ao plágio alegre de muitas gerações. (Purgado de toda a pretensão à genialidade) Modéstia de se limitar a letra à extensão daquilo que o mais bêbado dos foliões é capaz de lembrar ou de aceitar que apenas alguns versos chegaram intactos na multidão” como explica um dos compositores da atual compilação, Miguel Duarte. Amplificada pela máquina do povo, estas canções foram em grande medida a voz compartilhada e o tom da história que contamos.

Ou seja, por aqui o prefeito e seu pálido plano de cidade nunca foram poupados, ao contrário, sua imagem de péssimo político é uma das mais célebres personas do carnaval (Fui Me Banhar na Praia da Estação, Marcha da Estação (Começa com M), Vai Pra Mudar o Brasil), mas mais que isso, a opinião política parece, por motivos óbvios, ser uma espécie de leitmotiv dessa composição de carnaval belo horizontina (basta ver ainda hoje a reverberação nas ruas de Coxinha da Madrasta, Imagina na Copa e O Baile do Pó Royal vencedoras do concurso citado acima). Tudo isso somado à tradição de trocadilhos e chistes populares (Solta o seu Toin e Homenagem ao Manja Rolha). Vale lembrar que para além das marchinhas, outros estilos musicais de acentos diversos fazem parte hoje dessa linguagem musical carnavalesca, e se o Unidos do Samba Queixinho é hoje uma escola e uma referência no samba, podemos ver ainda a marcante presença do samba-reagge (aqui representado pelo Então, Brilha!), assim como o Ijexá (capitaneado pelo transcendental Pena de Pavão de Krishna) e até o groove funk do bloco Chama o Síndico.

Mas vale dizer, o que apresentamos aqui não é a única história possível desse carnaval. Existem dezenas, centenas de composições, histórias, fatos que se perderam ou sequer foram registrados. A todo ano diversas canções são feitas e também se perdem. E por certo não vão parar de surgir a cada carnaval. Este é apenas um percurso que propomos. 2009, quando saímos entoando algumas marchinhas pelas ruas da cidade, alegres e inconsequentes, carregando desde então os estandartes do Bloco do Peixoto e Tico-Tico Serra Copo, parece hoje um ponto distante no tempo. Nós que lá estávamos, quando olhamos parecíamos até mesmo outras pessoas e esta capital, ao menos culturalmente, guardava sim ares de uma outra cidade. E talvez por isso hoje estejamos aqui, juntando desde já cacos de histórias, canções, imagens desse verdadeiro turbilhão que não cessou, e avança cada dia mais e nos lega, desde já, uma memória, talvez, de um dos períodos mais ricos da história recente da cidade.

Guto Borges, músico e historiador.

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